Lendas da Citânia
Publicada originalmente em 1984, numa edição da Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto e republicado em edição fac-similada em 2018 pelo Município, a obra "Etnografia de Paços de Ferreira" do Prof. Manuel Vieira Dinis constitui um excecional trabalho de investigação e recolha etnográfica dos costumes e tradições do concelho.
Incluído nesta obra, encontra-se um exaustivo trabalho de levantamento de todas as lendas do imaginário da Citânia de Sanfins que, nas palavras do próprio, se nos apresenta "enriquecida com um feixe de lendas curiosas que se mantêm e se ouvem recontar, de geração em geração, fruto natural de crenças enraizadas" e nos encantam com a expressão de atos de "bondade ou de vincada rudeza, de perseverança ou de ambicionado desejo, escoando-se, aqui e mais além, um fio cristalino de verdade para conhecimento da civilização coeva".
“Há muitos, muitos anos, indo um mancebo abrir a presa da fonte da moira, na encosta da Citânia, encontrou-se uma linda moira a lavar enxadas, correntes, engaços, que de amarelinhos mais pareciam de oiro. Quando o moço, algo admirado, se preparava para esvaziar a presa, a jovem pediu-lhe por boas palavras que esperasse uns momentos para acabar aquela cuidadosa ou estranha limpeza das alfaias que tinha à sua volta.
Porque julgasse que a sua alminha iria penar, se acaso acedesse ao pedido, o rapaz, mais amarelo do que um rolo, deixou a presa aberta e foi-se lesto embora, sempre a olhar para trás, que aquilo estava visto: só obra do demónio!
Como era de supor, a lavadeira não ficou contente, e, entre as suas palavras de maldição, prometeu que nunca mais ninguém chegaria a regar com água daquela fonte…
O castigo não tardou… Dias depois, o rapaz voltou de novo à presa, abriu o buraco, rego além, até aos lameiros de Bouça-Monte, à espera da água que soltara. Mas a vingança da moira… Lá na funda, o mocetão esperou muito tempo mas água … de grilo! Desesperou-se. Resolveu então voltar à presa e, à medida que ia seguindo o rego, mais se admirava por ver que este estava simplesmente orvalhado. Porém, o seu espanto foi maior ao repara que a presa tinha pouca água e a que ainda escorria logo ali perto se esperava por uma fisga do lajedo! Sem saber o que fazer, o moço camponês olhou em redor, falou sozinho e repetiu muito devagar algumas palavras da moira - …nunca mais ninguém regará com esta água… nem erva… é curioso que ainda hoje, como naqueles tempos, a água da fonte da moira não tem aproveitamento… pois desaparece a poucos passos da nascente.”
Etnografia de Paços de Ferreira, Manuel Vieira Dinis
“A ela iam as mourinhas da Citânia lavar a roupa. Numa ocasião, entregava-se a esse trabalho uma donairosa menina. A roupa lavada era posta a enxugar numas grades de varões de oiro maciço. Aconteceu passar no caminho da fonte e da serra um dos pastores de Sanfins, com o seu rebanho. A manhã ia em meio, e a mourinha pediu ao pastor um pouco de leite de cabra. Pagaria a dádiva com um varão de oiro puro daquela grade. O pastor fez-se rogado com receio de qualquer malefício para a sua alma de cristão. Se a atendera, ficaria podre de rico…”
Etnografia de Paços de Ferreira, Manuel Vieira Dinis
"A curta distância da Citânia, para os lados de Bustelo, viveu em recuados tempos um humilde guardador de gado que tinha na sua companhia uma única filha. Do rebanho de ovelhas e cabras talhavam, sabe Deus como, o pão de cada dia.
A filha do cabaneiro, catorze anos mal contados, soltava de manhã cedo o sue rebanho pelas ladeiras mais mimosas da serra. Enquanto o pai atimava outros trabalhos, a pastorinha era rainha de todo aquele ermo, ora sentada nas conchas dos penedos, ora a correr atrás de uma avezinha das alturas. Regressava ao se casebre do penedo sino, avisada pelo sol, a esconder-se para as bandas do mar.
Numa fresca manhã, quando se dispunha a abalar, mais uma vez, com as suas “mecas”, viu sobre o penedo do sino – pedra enorme que servia de vedação à corte – um sardão verdiscado, de olhos vivos e brilhantes.
Embora as ovelhas se atropelassem em busca da saída e a pastora estivesse muito próxima, o sardão mostrou-se calmo.
Dia a dia, a pegureira deu em espreitar o penedo; o sardão lá estava muito sereno. E, talvez devido a essa quietude, a cachopa passou a chegar-lhe leite duma cabrinha branquinha que aparecera abandonada na Citânia. Porém, certa manhã, a rapariga, vendo faltar o leite na sua linda cabrinha branca, murmurou com tristeza, junto do penedo do sino:
- Ai, pobre bichinho! Não sei o que há-de ser de ti…
Ante o espanto da pastorinha, no dia seguinte, em vez do sardão, estava sentado no pedregulho um formoso mancebo, que logo assim falou:
- Escuta, menina. Não tenhas medo! Eu fora transformado em sardão. Tu quebraste-me o encanto. Merece uma lembrança a tua bondade e a tua coragem.
Durante noventa dias deste-me leite dessa cabrinha que certa ocasião recolheste.
Boquiaberta e trémula, a pastora não tinha forças para gritar e fugir. O simpático moiro, sorridente, acrescentou:
- Eu vou partir já. Não fales nisto a teu pai. O segredo de tudo será a tua felicidade. Assim que estiver a salvo, no meio dos meus parentes, a cabrinha branca voltará a ter leite. Esta é a certeza de que nada de mau me aconteceu.
Ouve por fim:
Deixo-te este talismã de ventura. Guarda-o muito bem, e, ao fim de três meses, tempo da minha viagem, põe-no sobre este penedo que é a arca dos meus tesouros. O talismã mudará para chave. Abrirás o penedo neste ponto que vou beijar. E que Alá te proteja, meu anjo!
Dito isto, o moiro, parecendo ter asas nos pés encaminhou-se para o alto da Citânia e nunca mais foi visto. A bondosa pastorinha, dentro em pouco, ficou rica e sedutora. Casou com um abastado lavrador de Sanfins. Já muito velhinha, dava gosto ouvi-la contar a lenda da sua juventude.
Outra variante da mesma lenda:
Perto da fonte das grades, era costume aparecer um bonito sardão. Por várias vezes correu atrás de uma rapariguita que levava à serra as suas ovelhas.
Um dia, o sardão falou como gente e pediu beijos à mocinha. Ela, muito assustada, deitou em correria a caminho da aldeia. Na revolta do carreiro, ainda desconfiada, olhou para trás, e, no sítio do sardão, viu um esbelto mancebo.
Era certamente um mouro encantado, porque tão depressa se viu como desapareceu…"
Etnografia de Paços de Ferreira, Manuel Vieira Dinis
“Já se passaram alguns séculos quando isto teria acontecido…
Um humilde lavrador de Eiriz partira com o gado para as bandas da Citânia. Vigiando a vaca, as chibas e as ovelhas, por lá ficava até à hora da merenda.
Acontecera, porém, que a turina, em certas ocasiões, desaparecia por artes do mafarrico e o pobre homem, se não dava em doido, pouco faltava. O mais engraçado é que, apenas ele se zangasse e praguejasse, logo a vaca, sossegada e farta, lá vinha por entre as tojeiras e giestas do penedo vazado.
Que havia feitiços, por ali, havia!.. Quem lhe tirava do miolo ver a “pinta”, bem na frente dos olhos, sumir pelo chão abaixo?
– Vem cá, toma!... Estrenoquelho assim!... Resmungava o lapónio, persignando-se dezenas de vezes.
Mas daí nasceu uma ideia: agarrar-se ao rabo da vaca e não a largar mais, ainda que lhe custasse a vida.
– Não há como a gente ver como estas coisas são…
Agarrou-se imediatamente à cauda da turina e ela, aos pulos medonhos, em corrida desordenada, fez o lavrador suar e tressuar. Mais teimoso ainda, apertava com quantas forças tinha o rabicho diro e peludo. Num salto violento, o animal afocinho por um silvado e enfiou por longo corredor muito escuro, levando o dono ora aos trambolhões ora de rastos. Mil voltas deram. Foram parar a lindo palácio. O chão era coberto de ricos tapetes e do teto pendiam pingentes de oiro e de cristal. É claro que o receio de perder a vaca ou ali ficar estarrecido impediam o lavrador de recolher parte daqueles maravilhosos tesouros.
Passados escasso segundos, apareceu uma velha muito feia e magra. No seu largo vestido de seda preta, causava medo. Vinha com uma escudela tirar leite à vaca. Esta ficou quietinha assim que a viu. Os olhos pequeninos da velha e os cabelos brancos encrespados completavam aquela horrível feitiçaria, que o era com certeza… Vá lá que não reparara ela, ao menos, no nobre viajante que a vaca tinha arrastado!... Se o visse, não sei o que seria…
Cheia a vasilha, a vaca largou em nova corrida por luras de breu. Todas as riquezas lá ficaram ao fundo daquela mina do penedo vazado, pelos tempos fora…
O bom do lavrador, assim que se viu são e salvo correu atarantado pelas bouças que se estendem para vilar e não quis mais saber da turina. Conta-se, a propósito, que, ainda hoje, em noites de luar, a vaca aparece a pastar na meia encosta da Citânia… mas agora vigiada atentamente por uma encantadora donzela que vive à certa no tal palácio encantado…"
Etnografia de Paços de Ferreira, Manuel Vieira Dinis
“No monte da Citânia, houve, em tempos muitos antigos, um penedo, polido e redondo como bunho de mar, e, por vezes, tão leve que nem fio de lã.
Este penedo era o encanto e a perdição dos rapazelhos que olhavam pelo gado lá por aquelas encostas. Chamavam-lhe o penedo rebolão.
Grande segredo estava atado áquela pedra. Retirada do seu lugar, parecia que tinha mafarrico. Dava gosto, pasmava-se vê-la rebolar em várias direcções, voltando ao lugar donde a tinham retirado.
O penedo era desta maneira o brinquedo acostumado dos pequenos pastores. Punham-na a rolar, equilibravam-se em cima dela. A pedra parecia saber brincar com eles sem nunca os ferir ou esmoucar.
Isto sucedia hoje e amanhã, até que, numa bela tarde, um lavrador de Negrelos, que vinha das bandas de Eiris, carreou o penedo sem pedir licença aos rapazes. Estes esperavam que a pedra voltasse para trás. Mas o carro lá se foi com o Rebolão em riba.
Ao chegar à ponte de Negrelos, o lavrador jogou o penedo ao rio. Das águas revoltas ergueu-se uma jovem encantadora.
O lapónio, ainda apalermado com o que via, pode ouvir:
- Quebraste-me o encanto. Há muito que isto devia acontecer. Adeus, que me vou para a minha terra.
Ninguém mais dera notícia daquela formosa mourinha."
Etnografia de Paços de Ferreira, Manuel Vieira Dinis
"Conta-se que lá na serra da Citânia havia dois penedos muito iguais, muito comparantes, o do Bem e o do Mal.
De um deles se dizia esconder a felicidade (o do bem), tal a quantidade de tesouros que no seu interior escondia, além de segredos e virtudes incontáveis.
O outro (o do mal) continha só dores, misérias, fatalidades.
– Ai dos pobrezinhos! Riam na vinda e partiam, doidinhos, pela rechão fora, se tocavam tal penedo na mira de descobrir rico tesouro.
O penedo do bem está ainda por achar… Ao penedo do mal quem o procura?”
Etnografia de Paços de Ferreira, Manuel Vieira Dinis
"Durante as guerras dos “afonsinhos”, um dos soldados portugueses, Frutuoso das Donas, tivera a sorte de ser levado por um grupo de mouros para o norte de África.
Muito maltratado, o preso suspirava hora a hora:
- Ai, terra de Eiris, terra de Eiris, que não te torno a ver!
A filha dum chefe mouro, ouvindo, certa ocasião, as palavras de infortúnio do pobre homem, correu até junto do pai a contar-lhe que o cristão metido na masmorra era de Eiris!...
O bravo chefe mouro, nesse tempo tolhido por rui cegueira, ficou radiante e imediatamente mandou conduzir o escravo à sua presença.
– Disse-me a minha filha que és de Eiris…
- Saiba, senhor, que sim.
– Conta-me então como é a igreja da tua terra- pediu o mouro.
O Frutuoso deu os melhores sinais.
Sobressaltado, o altivo chefe prosseguiu:
- E conheces a Citânia? A lameira do Redundo? E as lajes de Celeirô?
– Como os meus dedos, senhor.
- E nunca reparaste nas ervas abróteas que crescem ao pé da Pedra Furada? - insistiu o cego, agitando no seu tamborete.
Frutuoso falou mais á vontade e do grande benefício dessas ervas no tratamento da cegueira.
O antigo guerreiro mouro conversou demoradamente com o nosso homem e por fim chamou a filha para lhe abrir um cofre que tinha à sua direita. Dele mandou retirar um par de sapatos com fivelas reluzentes. Entregando-os ao cativo, disse-lhe:
- Aqui tens estes sapatos. Vais a Portugal e à terra de Eiris, mas só os calçarás assim que chegares a Celeirô. Aí pisarás as ervas que te falei até as solarias ficarem bem tintas de verde. Depois, mete-os outra vez no saquitel e na vinda passa pela Cancela do Hortal, onde encontrarás três sapinhos com uma pinta branca na cabeça e os recolherás neste estojo. Se mos trouxeres, seremos todos muito felizes.
Ao cabo de longos meses, Frutuoso das Donas, depois de ter comprido com habilidade tão arriscada tarefa, pois um dos nossos reis trazia seus exércitos pelo Alentejo, paria satisfeito para a Mauritânia.
Recebido entre festejos e honras, o mouro apressou-se a esfregar os olhos com os dedos que já haviam tocado as solas dos sapatos coçados nas ervas abróteas. Como por milagre, recuperou a vista.
Maravilhado, entusiasmado, pegou nos três sapinhos, soltou-os em sagrada bandeja de família e ali, com espanto geral, se transformaram em esbeltos e fortes mancebos.
Frutuoso quis fugir, mas, reparando nas vigias, quedou-se com medo.
O chefe mouro disse-lhe então que os três mancebos tinham ficado encantados um dia que se viu atacado pelos cristãos numa viagem à Citânia.
Em recompensa de tão bons serviços, Frutuoso das Donas pôde regressar rico e salvo à sua casa de Viso, de Eiris, usando os trajes moiriscos e contando suas aventuras."
Etnografia de Paços de Ferreira, Manuel Vieira Dinis
"Mais chegado a nós este conto, mas igualmente preso ao lendário da Citânia:
O filho, vendo o pai velho e gasto, resolvia levá-lo ao Picoto, numa cárcova da Citânia, onde o deixaria com manta esburacada e um pouco de comida num caco da cozinha.
As garras da morte e as aves de rapina faziam o resto.
– Já sei aonde me levas – teria dito o ancião. Por aqui passei com meu derreado pai… E, num dia que não vem longe, aquele mocito que lá tens em casa há-de fazer-te o mesmo. Foi pena não o trouxesses para ficar a conhecer o caminho…
Um clarão de bondade e de amor a si próprio iluminou o cérebro rude do filho. E, meia volta arriba, o velho regressava ao preguiceiro para descansar mansamente durante alguns invernos.
O gárrulo do neto aproveitou a lição. O Picoto do Pai caiu em abandono, mas é recordado através da lenda como relembrança daquele dia distante em que raiou um Sol novo para aquecer a velhice."
Etnografia de Paços de Ferreira, Manuel Vieira Dinis
"Corre também a lenda de que os «mouros» da Citânia eram tão forçantes que lançaram pelo ar o martelão grande quando lho pediram emprestado os pedreiros que construíram a capela do Senhor do Padrão (Monte Córdova) e o Mosteiro de Roriz.
Os artífices de Roriz, agradecidos pelo auxílio do marretão, lavraram nos modilhões que sustentam o coro a cabeça de um homem e de uma mulher da gente da Citânia..."
Etnografia de Paços de Ferreira, Manuel Vieira Dinis
"A Citânia tinha uma estrada ou mina subterrânea 'por onde os mouros levavam os cavalos a beber ao rio Vizela'.
Nestes contarelhos nota-se o traço vivo do inverosímil. O deslize cronológico ressalta também e é flagrante na vizinhança das idades quanto à Citânia e o Mosteiro de Roriz, mas o ontem apresenta-se sempre nebuloso para o povo laborioso e crente de Eiris e Sanfins, que pode dizer-se nascido e criado nas pequenas rugas da serra, vivendo sem grandes ambições e agradecido ao Senhor que tanto lhe dá. Ouvindo uma lenda, afirmou alguém, seja qual for a idade ou nível de cultura, somos arrastados para um mundo estranho, talvez de coisas díspares, mas capaz de nos encantar.
- Só por tineta se pode dar crédito à lenda?
- Paciência. Vejo nela um formoso fitilho tradicional; aproveita-o a História, enflorando as suas páginas mais belas. E 'quem descrê das tradições lá irá para onde o pague' - põe de aviso Alexandre Herculano."
Etnografia de Paços de Ferreira, Manuel Vieira Dinis