Outras lendas e tradições
De acordo com o registo do Prof. Manuel Vieira Dinis em "Etnografia de Paços de Ferreira", "A Dança dos Pedreiros tinha uma maior representação na freguesia de Penamaior, tendo sido recuperada então pelos artífices da localidade e inclusive feito parte das comemorações do I Centenário do Concelho.
No entanto, esta tradição espalhou-se por várias freguesias, existindo relatos da sua representação em Freamunde, Arreigada ou Sanfins.
"A Dança dos Pedreiros", segundo a tradição oral, era recriada em todos os entrudos (os “Milagrosos Carnavais”), nos inícios do século XX. Em algumas monografias é levantada a possibilidade desta Dança descender de algum “auto vicentino ambulatório, talhado para artes e ofícios”, considerando o renascimento ser um período que fomenta as corporações profissionais e as suas rivalidades, que “primavam” por se ver bem representadas em danças ou quadras nas procissões mais importantes. Aqui é apontada a larga tradição nacional de integrar nas procissões mais importantes a representação dos ofícios, nomeadamente o que acontece em Miranda do Douro com os Pauliteiros.
É aqui apresentada a estrutura da Dança, de acordo com o que se encontra plasmada na referida obra do Prof. Manuel Vieira Dinis:
Intervenientes: Grupo de pedreiros, o meirinho, o preto, o mestre, a mulher do mestre, o rapaz dos picos, rapaz do mestre, dois guardas.
Acessórios: Picos de pedreiro, régua do mestre, espada do meirinho e dos guardas, pião do rapaz dos picos.
Indumentária
- Pedreiros: “(...) carapuça vermelha, em camisa, com lenço maiato ou vianês traçado à banda, calça com vivo vermelho, faixa azul ou de cor, faixa à cinta e algibeira de mulher, e mascara a esconder o rosto, o que dificultava a cantoria.”
- Preto: “(...) O preto, para não se enfarruscar, mais parecia um farricoco, embora de labita rachada e calça às riscas”.
- Meirinho: “O Meirinho, todo de branco – fatiota de brasileiro – de palhinha, gravata vermelha e polainas. De bastão, ou de sinal de homens das justiças, uma bengala torcida a parecer-se com a gaita dum bovino de Ramalde.”
- Mestre: ”(...) com o seu coco e casaca de cerimónia”
- Mulher do Mestre: ” (...) vestia roupas antigas de lavadeira da região.”
“O tema desenvolvido é simples, mas chega a despertar interesse. Só o remate, com alguns passos, de nada justifica o nome que lhe dá o povo (...).
Dispõem-se os pedreiros, com os seus picos, em duas filas, cara a cara. O mestre e a mulher num extremo, tendo junto deles os rapazes da ferramenta. A cerrar as filas, o preto, o meirinho e os dois guardas. Dado o começo com uma peça musical pelo trio de tambor, harmónica e um bandolim, ouvem-se os figurantes:
Pedreiros
– Milagrosos carnavais
Vamos hoje festejar;
Vamos dar princípio ao baile,
Não podemos demorar.
(agitam os picos como se estivessem a trabalhar)
Mestre – (passeando e declamando entre as duas filas)
- Viva! Ei-los três senados,
A quem venho respeitar.
(mais os meus oficiais
Procurar que trabalhar).
Pedreiros
– Nós só q’remos que o Entrudo
Nos dê nova animação;
E agora só queremos
Que presteis vossa atenção.
Mestre
– Estes meus oficiais
São leais e verdadeiros.
Dizei a estes senhores
As obras que tendes feito.
Pedreiros
– Nós todos somos pedreiros
Que vimos da beira-mar;
Vimos a esta cidade
Procurar que trabalhar.
Mestres
– Eu já fiz um moinho
Todo de pedra miúda,
De tão fina que ela era
Como o pelo duma burra.
Pedreiros
– Nós todos somos pedreiros
Que vimos de trabalhar;
Sabemos erguer socalcos
E casas a retalhar.
Pedreiros
– Nós fizemos uma torre
Devedida em mil parcelas;
De tão alta que ela era
Que até chegava às estrelas.
(Apontam todos com o indicador direito para o firmamento)
Mestre
– Eu também fiz um palácio
Na cidade de Coimbra,
Todo de Pedra lavrada.
(Meus senhores, que coisa linda!...)
Pedreiros
– Nós fizemos um palácio
Na cidade de Leiria,
Todo em pedra pequena
Mas saiu em esquadria.
Mestre
– Eu também fiz uma ponte,
Dividida em muitos arcos,
Toda passadinha à régua
E dividida a compasso.
(Mostra ao público a régua e o compasso, conduzidos por um rapazito).
Pedreiros
– Também fazemos carrancas,
Meus senhores, p’ra chafariz.
Já fizemos uma em Braga
Que mostrava o seu nariz.
(Indicam todos para o mestre)
Mestre
– Eu de pedra fiz um burro
De quatro pernas iguais;
Inda tinha mais juízo
Do que os meus oficiais.
Pedreiros
– Ó senhor, não tome as obras
Sem primeiro nos pagar;
Andámos, há nove meses,
Sem real arrecadar.
(Fazem o gesto vulgar de identificar o dinheiro, roçando o polegar no indicador.)
Mestre
– Deita, Cristo, quem acode
Que me vejo enfadado?
Que me diz os meus pedreiros,
Eu que lhes não tenho pago?!
(Surge o meirinho com dois soldados e brada a estes)
Agarra… cerca… tem mão.
Está preso o senhor Meritão,
À ordem do senhor meirinho
E por falta de tenção.
Se tem palavra que me diga,
Enfio-lhe esta moca na barriga!
Mulher (Esta dirige-se em tom aflito ao representante da autoridade):
- Abrande, senhor meirinho,
Essa sua condição,
Que as pedras também abrandam,
Aquelas que duras são.
Meirinho
—Recolha-se lá, menina,
Bem se pode arrecolher;
Se me torna a retrucar
Também a mando prender.
Mulher
– Valha-te Deus, meu marido,
Que te não posso valer;
Que te vejo agarrado
Como os que vão p’ra vender.
Meirinho
– (Atrevido e galanteador):
Ò bela, minha menina,
Eu já estou bem entendido;
À vista destes teus peitos
Meu coração ‘stá vencido.
(Ao pretender tocar-lhe o peito, o preto intervém e exclama)
Larga, larga, lambão…
Também o mando prender
E não prender nosso patrão.
Vem prender o nosso mestre
Com soldados de carabina?
(… … … mas o pleto (preto) está a desconfiar que vem com o cheiro na concorvina (concubina)! E vira-se para o Meirinho e diz:
Muito hás-de-te enganar,
Que não largo esta menina;
Que ela ser bem boa e bela
Mas também ser espertina.
(A mulher caminha, agora, por entre os homens dos picos e roga):
E vós, meus oficiais,
Mandai-me agora soltar,
Que eu trago muito dinheiro
Para tudo vos pagar.
(Os pedreiros reclamam do meirinho):
Solte lá o senhor mestre,
Já que a senhora assim quer;
E bem que reconhecemos
O valor duma mulher.
(Retiram-se o meirinho, os soldados e o preto para os seus lugares).
Pedreiros
– Senhor mestre, dê licença
De nós irmos merendar;
Que estão chegadas as horas
De nós irmos descansar.
(Sentam-se todos a merendar. Vai o preto dançar para o meio, comendo de todos).
Rapaz dos picos:
Deus vos salve, oficiais,
Que estais a merendar;
Venho buscar picões
Se os dais para aguçar.
Pedreiros
—Vai com Deus, rapaz dos picos,
(passeando pelo meio);
Ficamos-te aguardecidos,
Por agora, arremedeio.
Rapaz
– Eu sou pedreirinho novo,
Inda não sei trabalhar;
Chego «rachas» para a obra,
Levo os picos a aguçar.
Pedreiros
— Senhor mestre e contra-mestre,
O rapaz é mandrião;
Leva os picos ao ferreiro…
… Põe-se a jogar o pião.
(o moço aparece no terreiro, com o pião a girar na dextra).
Mulher
– Comei, comei, que vos preste,
No fim, graças vamos dar,
P’ra depois fazermos contas,
Para tudo vos pagar.
Rapaz do mestre (o da régua e compasso):
Venho aqui, oficiais,
Do vosso mestre mandado,
Que estão chegadas as horas
Que ele vos tinha marcado.
Mestre
– Andai, andai, ó rapazes,
Acabai de merendar,
Que estão chegadas as horas
Que vos dei p’ra descansar.
Pedreiros
– Dê licença, senhor mestre,
Sequer mais um bocadinho,
P’ra meter o pão à saca
E beber o nosso vinho.
(Levantam-se e fazem que bebem mais uns golos da garrafa ou cabaça presa à cinta).
Pedreiros
– Vamos dar o fim ao baile,
Já não temos mais lugar,
E agora pelo fim
Não tem mais que desculpar.
Contra-dança final: Entram todos a dançar para o lado. Batem os cabos dos picos. Ficam voltados uns para cada banda. Dão mãozada e meia volta. Formam um arco e passam dois a dois por baixo.
Os guardas mantêm a ordem, e o preto, em constantes pantominas, vai colhendo as últimas moedas solicitadas à assistência(...)."
Etnografia de Paços de Ferreira, Manuel Vieira Dinis
“Ao norte da freguesia de S. Mamede de Seroa, do concelho de Paços de Ferreira, existiu em tempos muitos antigos, num dos ramos montanhosos da serra da Cabreira, uma gruta com seu altar, a qual servia de abrigo a um pobre velho ermitão.
Como ainda hoje se conta, nem ventos nem tempestades o importunavam… Dia a dia, depois das suas orações, o santo velhinho descia aos povoados vizinhos de S Mamede, S. Domingos e Santa Marinha, e entre rezas e lágrimas, batia à porta dos casais. Qual seria o coração capaz de lhe negar uma esmolinha?!
Logo que a sacola indicasse remedeio, fiava preces de graças a Deus. A cada esmola que lhe davam, respondia sempre com estas palavras: Quem bem faz para si o faz. E lá ia, à noitinha, monte arriba, a caminho da sua simples e tão sozinha gruta e morada, num recanto do Pilar.
Aninhado no vale, via-se um rico solar, onde vivia a nobre Dona Lopa Mendes, filha de Mem de Gondar e esposa de Diogo Bravo, de Riba-Minho. Como senhora de bem-fazer não havia outra muito perto, mas era muito orgulhosa e ruim de génio. E assim, quem a censurasse, podia contar com a sua vingançazinha…
Ora sucedeu, certo dia, o ermitão ir lá pedir esmola, e tantos ralhos ouviu que não se esqueceu de mal dizer o génio de Dona Lopa. A bondosa senhora, que bem depressa teve conhecimento das queixas do ermitão, prometeu então esmola melhorada para outra vez. O ermitão, na forma do costume, voltou ao paço, a pedir.
Era quinta-feira; aproximava-se a noite. D. Lopa mandou dar-lhe um bolo que ela própria preparou e envenenou, capaz de causar a morte ao ermitão. Este, longe de suspeitar o mal que o bolo continha, lá abalou, murmurando: Quem bem faz para si o faz…
No dia seguinte, sexta-feira e dia de jejum, foram parar à gruta dois jovens caçadores, filhos de D. Lopa. Cansados de correr monte, pediram alguma coisa para trincar. O ermitão, condoído e de bom pensar, deu-lhes então do bolo; comeram-no todo: era grande o apetite.
Depois de agradecerem a atenção, os dois mancebos partiram com destino ao solar. Mas ainda mal tinham arrumado os cães e apetrechos de caça, e começavam a sentir fortes dores no estômago.
D. Lopa, interrogando-os, soube terem comido bolo envenenado. E chorosa e aflita correu à gruta a pedir o socorro da palavra de Deus, na salvação de seus queridos filhos. …Quem bem faz para si o faz.
– Não demoreis, senhora. Voltai ao paço que os vossos filhos sãos e salvos encontrareis – disse o ermitão.
A nobre e orgulhosa senhora tão arrependida se confessou que foi acabar os seus dias, por voto ao senhor, numa torre que possuía em Padronelo de Amarante.”
Outra Variante:
“No alto daquele monte,
Seus anos lá foi passar,
Um ermitão pobre e santo
Levando a vida a rezar.
Rezadas que eram as preces,
Depois de mui meditar,
Lá descia ao povoado,
Olhos tristes a orvalhar.
Batendo de porta em porta,
De porta em porta a esmolar,
Comia o pão que lhe davam
E todos lho queriam dar.
A todos que o benfaziam,
Agradecia a chorar,
Desta guisa, nestas falas
Que eram sempre o seu falar.
“Quem bem faz para si o faz”
Indo-se embora a rezar,
Lá no fundo desse monte
Havia um rico solar.
Duma dama que em nobreza
Não se podia igualar.
Chamava-se D. Lopa…
Dava esmolas sem contar.
Mas o seu mau génio tão ruim,
Ninguém podia aturar;
Aquele que a censurasse,
Havia de lhas pagar.
O santo do Ermitão,
Sempre lá ia mendigar.
Uma vez tais coisas viu
Que teve de a censurar.
Má hora fez reparo,
Má hora a fez irritar,
Que ela em grande freima
Logo fez por se vingar.
Ao outro dia o ermitão
Como era de costumar,
Lá foi pedir esmola…
D.Lopa a mandou dar.
Era um bolo apetitoso
Que fizera envenenar,
E o pobre lhe agradece,
Sempre no mesmo falar:
“Quem bem faz para si o faz”
Sem do mal desconfiar…
Nesse dia o não comera,
Que o dia estava a findar.
Na seguinte sexta-feira
Costumava jejuar,
Não comia nem bebia
Para a Paixão memorar.
Foi então que lá no monte
À gruta foram parar
Dois filhos de D. Lopa
Que chegaram de caçar.
Deus te salve, ó ermitão,
Pará lá de meditar;
A caça foi malfadada
Nada se pôde apanhar.
Não comemos há três dias
Nestas serras a vagar…
Olha se tens mantimento
Com que a fome nos matar.
-- Vossa mãe me deu um bolo
Que inda está por encetar…
-- Venha ele depressinha
Que são horas de o tragar.
Quando fores pedir ao Paço,
Bem o havemos de pagar…
Os donzéis se foram logo
Para o seu rico solar.
A tardas horas à gruta
- Lopa vem chamar,
De joelhos e aflita,
Toda lavada a chorar.
-- O ermitão vem depressa,
Vem ao Paços sem tardar…
Ai! Negros dos meus pecados
Que Deus me quer castigar.
Envenenados meus filhos,
Meus filhos se vão finar…
Com o bolo que te dei
Com que me tentei vingar.
Triste de mim malfadada!
Tu os podes vir salvar.
Oh! Mal haja a minha sorte
Que tanto me faz pecar.
Oh! Mal haja a minha culpa
Que a hei-de desagravar
Que penitência bem rija,
A mais rija de penar.
-- Embora tu cá vieste,
Embora podes voltar.
O senhor tem piedade,
E há por bem perdoar
A teus filhos lá no Paço,
Sãos e salvos os vais achar.
- Mal ouviu o santo ermita,
Mal acabou de escutar.
- Lopa corre logo,
De repente ao seu solar;
Seus filhos estavam salvos
Por milagre de espantar.
De alegria tão profunda,
Ali se quis desmaiar;
P’ra reparar suas culpas,
Resolve o mundo deixar.
Encerra-se em pedras frias,
Numa torre de Gondar;
Quis ali todo o momento
Da sua vida pensar:
“Quem bem faz para si o faz”
Não se pode isto negar;
Se não encontra na terra,
Lá no céu o há-de achar!"
Etnografia de Paços de Ferreira, Manuel Vieira Dinis